segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Poças de Lama

O barco deslizava com quase nenhum balanço na vaga das ondas daquele mar imoralmente azul. Desenhado no horizonte, o porto se sobrepunha às colinas cobertas de casinhas brancas iluminadas por aquele nascer do sol de verão, o mesmo que cobria aquele rosto que eu já vira ter tantas cores. Tivesse eu o dom do traço, teria feito bela arte com aquele perfil alaranjado, mais familiar que o meu próprio, emoldurando a infinidade daquele mar tão antigo e romantizado. E, ao finir a obra, chamá-la-ia “Felicidade”, pois aquele momento, só nosso e do Egeu, não poderia ser melhor nominado. Uma lástima que meus desenhos sejam sempre essa pilha de palavras trôpegas e cheias das tais metáforas.
Piso numa poça de lama gelada e, em meio segundo, apaga-se meu quadro mental. Minhas pernas parecem gelatina, sobretudo para vencer o vento outonal, mas sigo pé ante pé numa marcha contrariada, absolutamente sozinha naquelas ruas largas e seculares. Ruas de mão única. Como de um precipício, eu não poderia voltar.
Inferno. Não deveria eu já ter me habituado a esse estranho “dom” de saber quando vou perder alguém? Pouparia o choque. Poderíamos ir direto para a parte que as lágrimas finalmente conseguem sair, em correnteza incessante como a que estava por vir.
Mas por hora, à meia-luz nessas ruas de cheiro maçante, o choque me prende a esses fantasmas mais vívidos que a realidade insalubre à minha volta. Meu nome, chamado de uma maneira doce como ninguém jamais chamara. Aquele abraço infinito que eu sentia tocar a alma. A cabeça no colo com a mão no cabelo, nosso gesto de proteção. Os braços carinhosamente entrelaçados. E, sobretudo, o calor da presença nos incontáveis fragmentos de tempo que eu aprendi a ver com mais cor, mais cheiro, mais vida. Vida essa que se descobrira ainda melhor enquanto compartilhada.
O vento me balança o capuz e eu piso em outra poça de lama. A rua continua vazia enquanto a lua se esconde atrás de incontáveis nuvens grafite, chorosas e cheias de você.
Não é mais verão, afinal. Tampouco para nós.

Paula Braga.

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