quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Sobre um saco de doces e um sorvete de morango


Eis o meu retrato numa quinta-feira mórbida qualquer, daquelas em que você se obriga a levantar da cama e viver. A noite mal dormida foi pontuada por pesadelos, alguns vívidos, e o dia se arrasta estressante e insalubre, a cabeça sem funcionar, o estômago reclamando. A boa e velha vontade de chutar o balde acompanha o cansaço mental enquanto vago atrás de um banco qualquer, depois de escrever páginas e mais páginas sobre uns tais urbanistas portugueses.
Típico. Tediosamente típico.
Ela, então, me acha ali, externamente lúcida, internamente exausta. Dessa vez, porém, vem com as mãos ocupadas, os braços abertos, à procura de mim com aquele sorriso tão conhecido, desenhado numa curva à qual a mais bela de Niemeyer não pode ser comparada. Surpresa.
Foi o que me trouxe aqui. Ainda sinto o gosto do sorvete e dos doces enquanto digito essas palavras, despertas pela doçura do gesto. Que me tomem por paradoxal, dona de um coração gélido mas que, para ela, faz-se lava escorrendo de um vulcão. Que me tomem, ainda, por ingênua, mesmo tão incrédula de todas as outras coisas da vida. Talvez aí resida boa parte da magia do sentimento: em terreno tão inóspito, vive um amor inacreditavelmente puro. Poderia eu abrigar, calada, tamanho afeto? É querer demais de alguém tão falante.
Lá estão as duas, a narradora e a supracitada. Quem as vê de fora não imagina um terço do que já passaram juntas, mas é perceptível a sintonia de seus gestos, a coerência de suas frases, o ritmo comum de suas ações. Para os demais, sobra a constante sensação de que estão conversando silenciosamente, por telepatia, uma habilidade adquirida menos com o tempo que com a intensidade dos momentos vividos.
Eles, porém, não imaginam tamanha verdade que elas carregam nos tão proferidos “eu te amo”, longe de serem banais, mas sim honestos a ponto de não se poder calar. Não, terceiros jamais entenderiam. Resta a eles criticar, admirar, ou até mesmo conviver com aquilo que elas criaram para si. Talvez possamos denominar irmandade. Não... É outra coisa, algo que ainda não tem nome. Mas quem se importa com tipificações? Contentam-se em saber que alguém, quase sempre ao alcance da voz, conhece, cuida e ama, acima de (e principalmente com) todos os defeitos. Alguém para o qual se possa entregar a parte mais pura e guardada do coração. Alguém que jamais o magoaria.
Penso em tudo isso no breve instante em que a abraço e os recebo, o sorvete e o saco de doces. É o tipo de coisa que penso mais frequentemente que verbalizo, calando por ocasião das banalidades. Mas cá estou, sem vergonha alguma, bobamente agradecida não só pela alegria do momento, como também, e sobretudo, por tudo que reservamos uma para a outra. Por cada segundo em que me senti feliz, cuidada... Protegida. E, mais ainda: pelo fato de ser guardada pelo melhor anjo que eu poderia querer.

Paula Braga.


terça-feira, 30 de outubro de 2012

Sintoma


O que me sobra é o verso
Quando se vão dores, alegrias,
Pessoas, promessas, feridas.
Quando tudo se faz ausente,
Resta-me apenas o verso.

Pinta-se por mãos exaustas
Juradas de não mais bordar
Na seda do ser
Tais verdades abomináveis.
Caio em mim, desgraçada em solidão.

Cá está, é o que me resta
Sozinho, o verso
Seco de tão chorado
Odiado de tão remoído
Inibido de tão evitado.

Eis aqui, curioso leitor, o sintoma de meu câncer
Veja que não é sem causa que parto
E me calo, e me despeço
E me despedaço
Pois é no verso que me mostro em dor.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

À Meia-Luz

Ela adentrou o quarto escuro e ligou apenas um abajur, por medo da claridade completa. A realidade agora doía em si tanto quanto a vida doera naquela que se fora. Ali, onde cada molécula de poeira carregava o testemunho da decisão incompreensível ao julgamento alheio, ela sentia verdadeiramente a perda.
Sentou na ponta da cama desorganizada. Nada denunciava a partida da autora de tamanha bagunça, salvo a ausência da própria. A visitante vasculhou cada centímetro com o olhar, lentamente, demorando-se ainda mais nos pontos que só ela e a ausente sabiam ter relevância na composição do desfecho. Dezenas de fotos espalhadas umas sobre as outras num mural que, obviamente, era ideal para comportar metade delas (nunca fora boa em escolher lembranças). Pilhas de livros sobre a escrivaninha, ao lado da estante com ainda mais livros, todos lidos com um apetite nunca saciável. A um canto, pequenas prateleiras expunham umas poucas maquiagens, dezenas de perfumes, e diversos bibelôs que remetiam a ela, onde quer que fossem vistos. Roupas jogadas na poltrona, algumas ao avesso, todas guardando um cheiro que logo se perderia... Deixou por último a caixa sobre a escrivaninha, e nela repousou o olhar durante longos minutos, tomando coragem para abri-la. Tomando coragem para o que se seguiria.
Recolheu a caixa, como lhe era de direito, sentou-se no chão, encostou-se à parede, repousou a caixa nas pernas dobradas e a abriu. Ali se achavam bilhetes, fotos, e, sobretudo, dezenas de cartas, todas amassadas e rabiscadas com a pressa de quem desabafa sem censura. Lágrimas lhe escorreram pela bochecha, um dia tão carinhosamente apertada, mas agora sem aquele afeto. Afeto esse que não retornaria.
Por que deixara tamanha imensidão emocional passar pela sua vida sem dela retirar o máximo? Por que, algumas vezes, menosprezara as palavras ditas por serem tão repetidas? Por que, em vez disso, não entendeu que eram tão proferidas por ser tão necessário transpor o limite daquele corpo maltratado pelos sentimentos? Por que calou tantas vezes, e, assim, perdeu a voz para sempre? À meia-luz, passou a noite inteira procurando respostas dentro de si para as perguntas que só a partida sem retorno pôde desencadear. Revirou todo o conteúdo da caixa, sem deixar passar uma palavra sequer. A aceitação não viria nunca, mas e o perdão, viria? Perdoar-se-ia por todas as vezes que calara, enquanto tudo o que a outra precisava era ouvir? Perdoá-la-ia por todas as vezes que tentou dizer, e ela, cega de decepção, insistia em não escutar?
“Hoje sou buraco-negro, sugando o entorno para o meu inferno particular. Inclusive você, que tanto me ouviu e tentou salvar. Hoje sou tempestade, meu bem, e nada você pode fazer. Mas quando eu for paz, poderei ser alento para ti. Não me esquecerei de você, esperando que você se cure de mim.”
Foi o último trecho que conseguiu ler. Afastou a caixa de si e deixou as lágrimas lhe desenharem a face, desinibidas e incessantes, constatando o que era irreversível. A conhecida decisão fora consumada. Onde estava agora quem tanto lhe amou, a ponto de não caber em si? Porque fora exatamente isso: não coube em si de tanto amor, e extravasou ao infinito. Agora era ausência, ali. Agora era paz, em todo lugar.


Paula Braga.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Partida

Parti o laço ao invés de afrouxar o nó. Soltei a mão que tanto me sustentara ao invés de diminuir o aperto. Larguei a cadeira de rodas antes que minhas pernas pudessem sustentar tanto peso, ou mesmo os braços tivessem força para segurar muletas. Em benefício alheio, abri mão do que outrora não suportaria pensar viver sem, por ter se tornado necessário privar a sanidade alheia daquilo que nem eu mesma consigo suportar. Esse “Circo do Terror” não precisa de expectadores.
O conflito me atormenta, ainda que a decisão já tenha sido tomada. Tão difícil quanto partir de quem se ama é manter-se erguida e sustentar a situação, dia após dia, falta após falta. Quem disse que o tempo cura, por favor, venha aqui dizer para as dezenas de marcas que me rasgam a alma toda noite, pois elas insistem em não me ouvir (aproveita e me traz uns analgésicos). Não, não é o tempo que cura, mas sim o gelo que se apodera dos corações flagelados. E eu já posso senti-lo a se aproximar...
Veja bem, meu bem: eu, por nós, largaria esse inferno e viveria sob tão amado cuidado. Trago, porém, o monstro circulando em minhas veias como um vírus, e por esse vírus sou obrigada a partir. Obrigada a deixar-te. Acredite, dói duas vezes mais aqui, mas a dor já me é familiar. Deixemos que ela fique comigo, por completo, para poupar-lhe de cicatrizes tão profundas quanto as que, desesperadamente, apresentei-lhe. Já eu... Livrar-me-ei de todas as dores e mágoas, no meu tempo e do meu jeito, para que o inferno que nos afasta tenha fim. Esperando que possamos ser novamente apenas almas entrelaçadas, partirei uma última vez.

Paula Braga.

sábado, 15 de setembro de 2012

Recado Dado


Acorda, menino. Só porque não deu certo com ela é preciso distribuir espinhos? Eu sei que você ainda tem saudade, que deseja aquela paixão de volta... Então, ferir pra que? "Quem desdenha quer comprar"? Não é porque alguém não te amou o suficiente, ou mesmo de maneira justa, que esse alguém merece ser julgado. Todos estamos no mesmo barco, meu bem, todos já perdemos um amor. E superamos. E outras superações virão, porque a vida a vida é feita disso. Que graça teria se tudo desse sempre certo? Paciência. Bola pra frente. Posar de "garotão" pros amigos e, a dois, demonstrar romantismo, não vai fazer de você um príncipe ou um "homem de verdade". Acorda, garoto. Julgar os outros não vai apagar o que passou, muito menos te fazer mais homem. Só vai te fazer mais hipócrita. Que tal olhar para si mesmo antes de apontar o erro alheio? Cresce. Aprende. SUPERA. Sair, beber, "pegar geral" e xingar pra esquecer é fácil, quero ver ter maturidade suficiente para olhar pra trás de coração limpo.

Paula Braga.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Atear


Sutil
Ardil
Invade-me o pulmão
Desperta-me o dragão
Que se ergue farejando o ar.

Expele fogo
Incendeia
Quebra suas correntes
Derretes cinzas de gelo
Reaquece seu lar.

Pois bem, o cheiro
Mas não só
A palavra, o carinho, a verdade
A proteção, o cuidado
A sorte.

Esse todo
Que me  livrou do nada
Esse todo
Que espantou demônios
E fez renascer a luz.

Por que não veem, cegos olhos?
A puxar-te do abismo está
Aquilo que se atreveu a te amar.
Por entre destroços e feridos
A guarda não ousou baixar.

A batalha é aqui
Fechando os olhos, podia sentir
O abraço benfeitor, o “fica bem”
Não ia ficar
Mas ali, queria.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Poesia Perdida


Acabou a poesia
Perdeu-se nos olhos de quem ria
E via
Com maestria
Um verso de desenrolar.

Acabou a poesia
Foi banida
Da vida
Dolorida
De quem desaprendeu a amar.

Acabou a poesia
Desfez o encanto
No pranto
De olhos fartos de chorar.

Acabou a poesia
Mas que desventura!
Perder a doçura
De saber versar.

Acabou a poesia
Acabou o combustível
Do meu embriagar.

Acabou a poesia
Acabou o sentir
Acabou o contar.

Acabou a poesia
Que me punha a cicatrizar. 

domingo, 10 de junho de 2012

Visitante


“A dor que dói mais habita além do que pode ser descrito em palavras. Pulsa dentro da pele em chamas, invisível até mesmo ao olhar mais atento. Hora é estrondo, hora é silêncio. Mas faz-se pior quando em sussurro suplicante, culpado, sedento por castigo. Sabendo que o merece. Sabendo que não há perdão para o malfeito feito.”

Estava eu rabiscando o papel à meia luz, sob pesado efeito de cafeína e tomada por uma culpa inefável, quando se deu. Três batidas na porta. Por hora, fracas. Com o estômago revirado, espiei pelo olho-mágico e me deparei com o olhar impiedoso do Destino. Afastei-me, temente, demente, sabendo o que aquilo queria dizer. Pude senti-lo respirando em lentas tragadas por trás daquele pedaço de madeira, um tanto mais lento que meu ofegar temeroso.
Sempre soube que viria, mas meu íntimo ansiava por, talvez, um esquecimento. Qualquer motivo para ter o tempo necessário para me recompor, quem sabe até me redimir. Mas era impiedoso aquele visitante, insistente nas batidas e na sentença. Não podendo mais ignorar o fardo, escancarei a porta de súbito, como que para encará-lo por inteiro de uma vez.
A ausência que senti a partir de então veio em rajadas frias, como o vento que invade a casa quando se abre a porta, desorganizando o que vê pela frente. Cartas nunca enviadas, textos nunca divulgados, tudo voando porta afora. Sequer tivera tempo de juntar os pedaços de mim mesma e enviar para que alguém cuidasse deles. O Destino viera antes. Uma foto outrora presa numa agenda pairou pela sala, antes de repousar aos meus pés. Alguém fora retratado enquanto me abraçava, sem preocupação, antes de tudo aquilo. Antes da crise. Antes da tempestade.
Tudo voltara a estar fora do lugar, pouco depois de eu conseguir pôr um pouco de ordem na casa. O visitante fora embora, deixando apenas caos ao meu redor. Eu fora avisada, mas escolhera relutar. Perdera. Encostei-me à parede mais próxima, em choque, permitindo uma lágrima gélida escorrer pelo contorno do meu queixo. Só me restava esperar o fim do hiato forçado, e manter-me sã até a volta das minhas primaveras particulares.
Como previsto, pouco depois, a Saudade chegou deslizando por entre xícaras quebradas e folhas reviradas, e sentou-se ao meu lado. Acomodou-me em seu abraço, enxugou-me a lágrima e me entregou o bilhete amarrotado que trazia no bolso:

“Quando tiveres a Saudade como companheira
E a fraqueza quiser lhe derrubar
Suas marcas também serão minhas
E eu lhe sussurrarei em pensamento:
‘Você não está sozinha nessa imensidão’.”

Paula Braga.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Felicidade Cotidiana


Um sorriso se desenha em meu rosto à sua presença. O quão feliz eu posso ser vivenciando coisas tão simples, porém tão significativas? A resposta correta é ‘infinitamente’, posto que tal presença tem feito os pequenos gestos tornarem minha rotina, outrora maçante, um tanto quanto repleta de singelas e discretas felicidades.
Sim, tenho sido mais feliz do que é socialmente verbalizável. Uma felicidade daquelas contidas, mas imensas, que se realiza em forma de bilhetes, abraços, brincadeiras. Aquela rotina que muitos têm, mas nem todos enxergam o valor. Digo porque vivi com essa visão embaçada, até que fui apresentada à linha tênue entre o puramente banal e o maravilhosamente cotidiano. E essa linha mostrou-se a mim na forma de uma pessoa.
Alguém que personificou muito do que eu nunca sentira.
Deixe-me ser mais clara, com o perdão do sentimentalismo: vale a pena abrir mão do desejável conforto subconsciente e aturar a si mesmo por horas a fio, tendo ao alcance da visão periférica aquele olhar cúmplice. Vale a pena encarar os desafios diários de quem está precisando crescer ‘na marra’, tendo aquele ombro amigo pronto pra te apoiar. Vale a pena enfrentar a si mesmo, em todo o seu inferno particular, sabendo que alguém ama e zela pelo que há de bom escondido. E, sobretudo, vale a pena doar-se a quem faz tanta coisa valer a pena.
Em suma, algo naquela personalidade, inexplicavelmente, prendeu-me em seu entorno. Destino? Sorte a minha ele estar a meu favor. O que posso afirmar com toda a certeza, diante de tudo que já foi dito e vivido, é que tenho sentido coisas boas demais para cogitar um final.

Paula Braga.

domingo, 29 de abril de 2012

Aquela Que Poucos Conhecem

Tenho vício por pessoas e sou toda intensidade. Isso resume a “Paula que poucos conhecem”: aquela que escreve, que se mostra em pequenos gestos, às vezes tão discretos que passam despercebidos. Não, “não sou fechada”. Pelo contrário, tenho prazer em ser um poço de sorrisos para quem quer que seja. Gosto de brincar, de “mendigar abraços”, de fazer piada... Eis a minha forma mais natural e espontânea. Mas a alma humana tem tantas esquinas que chega a ser ingenuidade achar que no meu caso seria diferente.
Não sou fácil de lidar, de entender, de amar. Não sou nem um pouco fácil de conviver. Mas dentre tantos defeitos, como o ciúme e a carência gritante – da qual não me envergonho –, encontra-se alguém que se apaixona pelas pessoas, no sentido mais puro da palavra. Apaixona-se por um sorriso, um gesto de confiança, um abraço, uma carta. Apaixona-se a ponto de sentir cada célula querendo ficar perto, querendo cuidar, querendo demonstrar que tal amor é vivo e presente a cada minuto do dia. Como eu disse, intensidade. Como eu disse, nada fácil de entender.
Eis a epifania que me pôs a escrever. Virei a cabeça para a esquerda e lá estava, com o sol a lhe iluminar o rosto. Que seja visto como bobagem, mas naquele momento eu me senti viva por sentir amor. Não que eu não soubesse que meu “coração de pedra”, adormecido para as paixões que outrora o calaram, pudesse sentir amor fraternal. Mas ali eu o senti, de fato, a inundar-me tal qual uma maré de ressaca, e me vi satisfeita. Não completa, mas preenchida. Isso bastou para me fazer feliz, acordar ao lado de quem me quer bem, agradecendo mentalmente pela amada amiga enquanto lhe acordava com um toque nos cabelos, vestida com aquele bom e velho sorrisinho debochado.
Isso tudo me fez pensar se vale mesmo a pena me esconder dentro de mim mesma. Já não seria hora de despir-me da vergonha que tenho do que sinto, e viver o que escrevo? O fato é que não sei ser de outra forma que não seja esta, onde palhaçadas revestem sentimentos. Mas eles hão de entender. Eles, que conhecem aquela que poucos conhecem. Eles, cuja existência me mantém sentindo o que sou, sendo o que sinto. Eles, que vivem aquilo que vem depois do superficial. Eles, que sabem o quanto é complexo, mas que continuam ao lado dos meus “eus”. Tanto o de dentro quanto o de fora. Pois, como diria Charles Chaplin, "cada um tem de mim exatamente aquilo que cativou".
Paula Braga.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Sorte


Nada tão sublime quanto um afeto nascido sem causa aparente ou consequência premeditada. Aflora nas mais inesperadas situações, com uma frequência crescente, e quando menos se espera já se torna parte de si. Pois bem, essa sou eu sendo agraciada com tal sorte.
Sorte, essa é a palavra-chave. Sorte por ter uma personalidade tão propícia ao surgimento de intensas amizades. Sorte por encontrar pessoas dignas de incondicionalidade. E, principalmente, sorte por gostar de cuidar de quem está comigo.
Outra vez ela me presenteia. Trouxe-me mais uma pessoa singular, daquelas que valem a pena. Involuntariamente, eu a incluí na minha “zona de proteção”, reservada para aqueles que me tocam a alma. Não foi sem querer, porém, que a venho mantendo em tal lugar. Pelo contrário: faço questão de cuidar, mesmo que sem urgência ou publicidade. Zelar quietinha, através de pequenos gestos, só pelo prazer de fazer bem e me manter por perto.
O acaso, no entanto, tem lá seus desencontros. Será mesmo preciso uma separação prematura? Rogo que não. Mas se é a felicidade alheia que está em jogo, engolirei o contragosto e encararei o desencontro de destinos com uma saudade conformada. Aceitar e apoiar decisões, mesmo que me afastem, com a maturidade de quem quer ser guardada na lembrança por ter construído algo belo enquanto vingou.

Paula Braga.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Diálogo

Essa é uma história sobre anjos.


Ela a abraçou e uma atmosfera de emoção as circundou, quase tangível pelos leigos transeuntes. Tanta mágoa recente e tanta nostalgia, tudo intenso e vívido dentro daquele abraço. Poderia ser eterno, não? Se houvesse uma máquina do tempo, certamente seria aquele o instante para o qual ela voltaria quando, tempos depois, a saudade insistisse em atormentar.
- “Tá tudo bem?”
Era uma pergunta quase retórica, tendo em vista os recentes acontecimentos e a eminente separação. A que ponto haviam chegado, cogitando uma separação...! Anjos não podiam deixar seus protegidos; amigos de verdade não se abandonavam, e ela não podia simplesmente deixá-la. Mas lá estavam as duas, cheias de erros, mágoas e orgulho disfarçado. Vontade de permanecer naquele enlace até que tudo fosse esquecido, como um crime que prescreve. Porém não havia tempo que pudesse apagar, por si só, as novas mágoas; e mesmo que o fizesse, levaria consigo a vivacidade do carinho que guardavam uma pela outra.
Se ela estava bem? Era uma pergunta interessante.. Depois de todas as lágrimas, frustrações e decepções, seria fácil soltar um “não, não tô nada bem” simples e direto, e iniciar ali mesmo uma discussão. Mas, ao contrário do que fora previsto, ela realmente estava se sentindo bem ali, junto dela. Como era fácil confortar um coração desolado apenas com um olhar...  Pena que não bastava, naquele caso. Mesmo assim, ela acenou positivamente com a cabeça, um segundo após a pergunta, sem a mínima vontade de soltar-lhes os braços.
- “Tá tudo bem com a gente?”
E pela primeira vez, naquele dia, ela quis chorar. Quis descarregar todo o medo de perdê-la ali, em forma de lágrimas, para que fosse consolada e tudo acabasse bem. Mas não era simples assim, e envergonhou-se pelo impulso infantil.
A pergunta, porém, desencadeou um turbilhão de incômodos. Alguns adormecidos, como o medo de perdê-la; outros inéditos, como o ciúme. Ao invés de escorrer pelos olhos, no entando, essas inquietações refletiram num aceno de dúvida com os ombros, o que separou aquele abraço e as fez sorrir de desconforto.
Pausa dramática, conversa banal e despedida formal. Ela virou as costas e saiu com passos pesados, levando nos braços o calor alheio e no coração, a vontade de ficar.

Paula Braga.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Vigília

Eu costumava gostar de sorrir, hoje eu sorrio por costume. "Bola pra frente", todos disseram, e eu resolvi ouvir. Vez ou outra uma lágrima borra a minha máscara, mas quem nunca deixou vazar fraqueza pelos olhos? O fato é que me contentei com o que me foi dado (e tirado), e cá estou: firme e quase forte.
Deixe-me ser mais clara: já fui jovem, já acreditei nesses dramas amorosos tão sofridos quanto passageiros. Já vi filmes de amor agarrada a um pote de sorvete. Já sorri com uma mensagem matinal, e já acreditei piamente, mesmo tão nova, que pudesse ser feliz a vida inteira com o mesmo homem.
Mas foi-se, águas passadas. E não era de se esperar que aquela mocinha, tão ingênua quanto quebrada, seguisse em frente? Aquilo tudo a fez mulher, ou melhor, o tempo a fez mulher. Fez-me mulher.
Bebo um gole de café e pisco os olhos rapidamente. Vigília. Largo as palavras já escritas e contemplo o céu lá fora. Cinzento, esgueirando-se por entre dezenas de prédios. Diante de tal imensidão, um pensamento de menina me ocorre: ele está em algum lugar sob esse mesmo céu, com alguns pêlos a mais na barba e uma porção de novidades na vida. Teria ainda o mesmo brilho ímpar nos olhos, de garoto sonhador em pele de homem? Ou os percalços da vida o teriam feito tão seco quanto aquela que mais o amou?
Dei um sorriso para o meu próprio coração gelado, que de tão blindado não se manifestava sequer para a lembrança do “garoto de olhar sorridente”. Continuava batendo na mesma freqüência desde que fora desertado, e nenhum outro, nesses anos todos, conseguira despertá-lo. “Paciência”, eu dissera para mim mesma, depois de mais uma tentativa frustrada de acordá-lo, “e chega de magoar mais pessoas.”
Desviei os olhos do céu e voltei ao papel. Mais um gole de café e mais uma dúzia de pensamentos suplicando para tomar forma caligráfica. “Sossega”, ralhei, “certas coisas não merecem ser revividas, nem mesmo pela ponta de uma caneta.”
Assim sendo, respirei fundo e me preparei para contar a história de amor de um terceiro, ou um caso qualquer que fizera parte da minha ávida busca por alguém que me reaquecesse. Passado. Mas as pessoas gostavam de ler as desventuras alheias, e eu estava ali para entretê-las.
Um ponto final seguido por uma assinatura, e mais um texto finalizado. Apaguei a vela com um firme sopro, levantei-me e dei as costas para a janela. Precisava de inconsciência, cansara dos próprios pensamentos. Através da janela o céu continuava cinzento, e longe dali, um homem de olhos castanhos e ainda sonhadores encarou as nuvens com um quê de dúvida e saudade.

Paula Braga.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Batalha Perdida


Estava frio, e essa era a única constatação física de que ela tinha ciência. Talvez porque a frieza lhe vinha dentro, tornando tanto as manhãs quantos as noites gélidas e iguais, e nem mesmo o mais sensato “eu tentei” lhe consolava. O fato é que estava frio, e ela tremia.
A frieza, porém, não lhe era natural. Pelo contrário, era tão rara que chegava a lhe parecer alheia. Mas depois do desejo constante de querer gritar, espernear, berrar e chorar feito um bebê mimado para não ter que perder, lentamente, aquilo que vinha perdendo, só lhe restara a frieza da ausência. A batalha perdida. As promessas jogadas fora. E todo um mundo de desilusões como rajadas de vento frio a lhe congelar.
“Mais uma desvantagem da desistência,” ela pensou, com um ar irônico por se ver contrariando uma das suas mais fortes características: a persistência, “essa ânsia por mais tentativas”. Mas após o calor da luta poderia vir tanto a glória quanto a derrota, certo? Ela entrou na batalha de peito estufado, de grito de guerra retumbante e de sólidas apostas, mas se viu obrigada a baixar a guarda e aceitar o desfecho, que já havia sido traçado há muito pelas mãos da sua própria bandeira, aquilo que vinha defendendo sem saber que poderia não valer a pena o esforço.
E por fim, a frieza da perda, o toque de retirada. Se faltaram armas ou guerreiros ela não soube, mas pagou um alto preço por ter insistido numa batalha há tempos perdida. Preço este que ainda pagaria por um bom tempo, pelo menos enquanto as lembranças insistissem em lhe voltar à tona com a mesma freqüência do anoitecer. E quando uma dessas lembranças se insinuou para ela, tomou-lhe a mente um pensamento julgado insano:
“Eu tentaria de novo.”
Outro arrepio gélido lhe percorreu o corpo. Ela tremeu.

Paula Braga.