domingo, 31 de maio de 2015

Hipnose

Eu vou te dar a minha casa, o meu barco, o meu carro, o meu patinete, a minha cama, o meu guarda-roupa, os meus livros. Eu vou te dar o meu sono, o meu riso, as minhas loucuras.  Eu vou te dar o meu dinheiro, o meu álcool, as minhas lembranças, as minhas crenças, os meus argumentos. Eu vou te dar a minha coleção de todas as coisas de cavalo, inclusive o pintado em minha pele. Eu vou te dar os meus textos. Eu vou te dar a minha história. Eu vou te dar o meu tempo. Eu vou te dar tudo o que tiver no meu coração e ao alcance dos meus pensamentos.
Eu vou te dar a mim inteira e não vou cobrar troco.
Eu vou te iludir com o meu beijo enquanto a minha mente passeia os dedos pela tua nuca. Eu vou te dar o meu silêncio, mas eu vou te dizer o que você quiser. Eu vou te ouvir como se o mundo estivesse mudo e te interromper quando a tua boca me fizer surda. Eu vou bater na tua porta com a tua comida preferida, ou eu posso cozinhar. Eu vou te fazer querer ir mais longe enquanto eu te chamo até lá. Eu vou inflar o teu ego e te fazer sentir a pessoa mais querida do mundo.
Eu vou te querer bem. Eu vou querer a ti.
Eu vou te dar tudo e não vou perder nada.
Vai ter você na minha casa, no meu barco, no meu carro, no meu patinete, na minha cama, no meu guarda-roupa, nos meus livros. Vai ter você em presença ou lembrança, no meu sono, no meu riso, nas minhas loucuras. Eu vou sentir os teus dedos contornarem o cavalo desenhado em minhas costelas. Eu vou te escrever textos, eu vou te contar nas minhas histórias, eu vou te ter em pensamento e coração.
Eu vou te ter para mim e não vou cobrar por isso.
Eu vou te marcar das melhores maneiras possíveis e te fazer esquecer o que é vida monótona. Eu vou pegar o teu tempo e transformar em meu enquanto a gente quiser, eu vou te tomar pra minha vida agora sem perguntar pelo depois. E se o depois vier, eu vou me dividir em pedaços pra te dar, mas não sem antes roubar alguns teus pra levar comigo.
Eu vou entrar na tua vida chutando a porta e sem pedir licença, eu vou elevar a voltagem ao máximo e mexer em todos os cômodos. E eu não vou sair sem te fazer dançar comigo na sala pelo tempo ou ritmo que for.

Paula Braga.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Aquarela


Desvio o olho da folha em branco para o desenho colado na parede defronte. Nunca notara a suavidade daquele perfil até vê-lo traçado por tantas cores, e talvez eu sequer reconhecesse se não fosse pela pinta, a fiel acusadora. Suavidade esta trazida justamente pelas inúmeras cores que se alternam num compasso incompreensível e ao mesmo tempo tão bem conduzido. Alguém coordenara uma sinfonia de tons que, por sua pluralidade bem guiada, lapidara uma imagem dentro dela própria. O rosto é o mesmo, e ele poderia ser de qualquer uma daquelas cores, mas alguém quis e fez com que fossem tantas.
Esse é o meu rosto. Eu escolho todas.
Tenho guardados em mim milhões de tons e são eles que eu vejo tão claros naquela aquarela. Não passa do meu reflexo. Esse caleidoscópio te permite me ver esbaldar-me em riso e esvair-me em choro dentro de um punhado de horas, bem como conciliar extremos e criar laços. Sentir o outro e sentir-me o outro é o que figura essa aquarela e me arma contra a prisão interna de quem tem medo de repintar-se, porque eu sei que onde, quando ou com quem for, esse universo de cores e tons vai me ensinar a (re)ser.
Como alguém que coordenou aquela sucessão de traços coloridos e, pouco a pouco, deixou-me aparecer entre tais rabiscos, sou eu quem guia o bordado de tudo o que posso me tornar. Pinto-me pela coragem de perdoar, de voltar atrás, de desistir, e mais ainda: de insistir. De mudar, transmutar, transformar, metamorfosear. Adaptar. Vestir-me de um tecido espiritual de todas as cores me permite ser qualquer uma, ou todas elas.
É essa consciência do que posso ser que vai, pouco a pouco, amenizando esse medo do que posso perder, deixar de sentir, esquecer; que intimida esse temor constante do desconhecido, das certezas cuidadosamente construídas e do lugar-comum. Mas não se engane, afoito leitor: essa metamorfose constante não me torna fugaz. Eu sempre vou deixar um fragmento de mim enquanto levo um pedaço do que me foi oferecido, e o que me carrega é também o que me segura.
Porque as tantas cores me fazem infinita e atemporal dentro de mim mesma.

Paula Braga.

sábado, 2 de maio de 2015

Nota Sobre Caminhadas Silenciosas


Estava voltando sozinha para casa, o que virara fato comum. Aprendera a gostar da caminhada silenciosa do retorno, e agradecia silenciosamente a um GPS que funcionava em qualquer circunstância. Agora não estava mais tão frio, e era prazeroso o seu novo costume de caminhar pelas ruas à noite fugindo daquele caos que, por vezes, não lhe pertencia mais. Animava-lhe a ideia de chegar em casa, tomar um banho demorado, vestir o pijama e dormir bem. Os novos pequenos prazeres que descobrira ao aprender a se respeitar.
Achava que essa paz, que já buscara tantas vezes para a cura de suas loucuras particulares, vinha do mundo, do que ela conseguia absorver desse universo que, afinal, conspirava tanto para o seu bem (e disso ela não tinha do que reclamar). Essa paz libertadora que de tantos infernos a tinha livrado. Mas a verdadeira calmaria encontrava-se no fundo daquele coração que ela oferecia insistente a tantos, mas que pertencia sobretudo a ela. E era o que de melhor tinha.
Foi maravilhoso descobrir que não pertencia a ninguém mais do que a ela própria.
E foi o melhor presente que poderia ter-se dado.
Hoje, parece menos alegre; tremendo erro do espectador. Enxerga a felicidade de maneiras diferentes, e ainda assim transmite a sua alegria de dentro para fora – não mais o contrário. Ama ainda mais o mundo, mesmo que pareça numa voltagem menor. A alegria se multiplicou uma vez que boa parte pertence, agora, também a ela.

Paula Braga.