terça-feira, 19 de maio de 2015

Aquarela


Desvio o olho da folha em branco para o desenho colado na parede defronte. Nunca notara a suavidade daquele perfil até vê-lo traçado por tantas cores, e talvez eu sequer reconhecesse se não fosse pela pinta, a fiel acusadora. Suavidade esta trazida justamente pelas inúmeras cores que se alternam num compasso incompreensível e ao mesmo tempo tão bem conduzido. Alguém coordenara uma sinfonia de tons que, por sua pluralidade bem guiada, lapidara uma imagem dentro dela própria. O rosto é o mesmo, e ele poderia ser de qualquer uma daquelas cores, mas alguém quis e fez com que fossem tantas.
Esse é o meu rosto. Eu escolho todas.
Tenho guardados em mim milhões de tons e são eles que eu vejo tão claros naquela aquarela. Não passa do meu reflexo. Esse caleidoscópio te permite me ver esbaldar-me em riso e esvair-me em choro dentro de um punhado de horas, bem como conciliar extremos e criar laços. Sentir o outro e sentir-me o outro é o que figura essa aquarela e me arma contra a prisão interna de quem tem medo de repintar-se, porque eu sei que onde, quando ou com quem for, esse universo de cores e tons vai me ensinar a (re)ser.
Como alguém que coordenou aquela sucessão de traços coloridos e, pouco a pouco, deixou-me aparecer entre tais rabiscos, sou eu quem guia o bordado de tudo o que posso me tornar. Pinto-me pela coragem de perdoar, de voltar atrás, de desistir, e mais ainda: de insistir. De mudar, transmutar, transformar, metamorfosear. Adaptar. Vestir-me de um tecido espiritual de todas as cores me permite ser qualquer uma, ou todas elas.
É essa consciência do que posso ser que vai, pouco a pouco, amenizando esse medo do que posso perder, deixar de sentir, esquecer; que intimida esse temor constante do desconhecido, das certezas cuidadosamente construídas e do lugar-comum. Mas não se engane, afoito leitor: essa metamorfose constante não me torna fugaz. Eu sempre vou deixar um fragmento de mim enquanto levo um pedaço do que me foi oferecido, e o que me carrega é também o que me segura.
Porque as tantas cores me fazem infinita e atemporal dentro de mim mesma.

Paula Braga.

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