segunda-feira, 1 de outubro de 2012

À Meia-Luz

Ela adentrou o quarto escuro e ligou apenas um abajur, por medo da claridade completa. A realidade agora doía em si tanto quanto a vida doera naquela que se fora. Ali, onde cada molécula de poeira carregava o testemunho da decisão incompreensível ao julgamento alheio, ela sentia verdadeiramente a perda.
Sentou na ponta da cama desorganizada. Nada denunciava a partida da autora de tamanha bagunça, salvo a ausência da própria. A visitante vasculhou cada centímetro com o olhar, lentamente, demorando-se ainda mais nos pontos que só ela e a ausente sabiam ter relevância na composição do desfecho. Dezenas de fotos espalhadas umas sobre as outras num mural que, obviamente, era ideal para comportar metade delas (nunca fora boa em escolher lembranças). Pilhas de livros sobre a escrivaninha, ao lado da estante com ainda mais livros, todos lidos com um apetite nunca saciável. A um canto, pequenas prateleiras expunham umas poucas maquiagens, dezenas de perfumes, e diversos bibelôs que remetiam a ela, onde quer que fossem vistos. Roupas jogadas na poltrona, algumas ao avesso, todas guardando um cheiro que logo se perderia... Deixou por último a caixa sobre a escrivaninha, e nela repousou o olhar durante longos minutos, tomando coragem para abri-la. Tomando coragem para o que se seguiria.
Recolheu a caixa, como lhe era de direito, sentou-se no chão, encostou-se à parede, repousou a caixa nas pernas dobradas e a abriu. Ali se achavam bilhetes, fotos, e, sobretudo, dezenas de cartas, todas amassadas e rabiscadas com a pressa de quem desabafa sem censura. Lágrimas lhe escorreram pela bochecha, um dia tão carinhosamente apertada, mas agora sem aquele afeto. Afeto esse que não retornaria.
Por que deixara tamanha imensidão emocional passar pela sua vida sem dela retirar o máximo? Por que, algumas vezes, menosprezara as palavras ditas por serem tão repetidas? Por que, em vez disso, não entendeu que eram tão proferidas por ser tão necessário transpor o limite daquele corpo maltratado pelos sentimentos? Por que calou tantas vezes, e, assim, perdeu a voz para sempre? À meia-luz, passou a noite inteira procurando respostas dentro de si para as perguntas que só a partida sem retorno pôde desencadear. Revirou todo o conteúdo da caixa, sem deixar passar uma palavra sequer. A aceitação não viria nunca, mas e o perdão, viria? Perdoar-se-ia por todas as vezes que calara, enquanto tudo o que a outra precisava era ouvir? Perdoá-la-ia por todas as vezes que tentou dizer, e ela, cega de decepção, insistia em não escutar?
“Hoje sou buraco-negro, sugando o entorno para o meu inferno particular. Inclusive você, que tanto me ouviu e tentou salvar. Hoje sou tempestade, meu bem, e nada você pode fazer. Mas quando eu for paz, poderei ser alento para ti. Não me esquecerei de você, esperando que você se cure de mim.”
Foi o último trecho que conseguiu ler. Afastou a caixa de si e deixou as lágrimas lhe desenharem a face, desinibidas e incessantes, constatando o que era irreversível. A conhecida decisão fora consumada. Onde estava agora quem tanto lhe amou, a ponto de não caber em si? Porque fora exatamente isso: não coube em si de tanto amor, e extravasou ao infinito. Agora era ausência, ali. Agora era paz, em todo lugar.


Paula Braga.

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