Eis o meu retrato numa
quinta-feira mórbida qualquer, daquelas em que você se obriga a levantar da
cama e viver. A noite mal dormida foi pontuada por pesadelos, alguns vívidos, e
o dia se arrasta estressante e insalubre, a cabeça sem funcionar, o estômago
reclamando. A boa e velha vontade de chutar o balde acompanha o cansaço mental enquanto
vago atrás de um banco qualquer, depois de escrever páginas e mais páginas
sobre uns tais urbanistas portugueses.
Típico. Tediosamente
típico.
Ela, então, me acha ali,
externamente lúcida, internamente exausta. Dessa vez, porém, vem com as mãos
ocupadas, os braços abertos, à procura de mim com aquele sorriso tão conhecido,
desenhado numa curva à qual a mais bela de Niemeyer não pode ser comparada. Surpresa.
Foi o que me trouxe aqui.
Ainda sinto o gosto do sorvete e dos doces enquanto digito essas palavras,
despertas pela doçura do gesto. Que me tomem por paradoxal, dona de um coração
gélido mas que, para ela, faz-se lava escorrendo de um vulcão. Que me tomem, ainda,
por ingênua, mesmo tão incrédula de todas as outras coisas da vida. Talvez aí resida
boa parte da magia do sentimento: em terreno tão inóspito, vive um amor
inacreditavelmente puro. Poderia eu abrigar, calada, tamanho afeto? É querer
demais de alguém tão falante.
Lá estão as duas, a
narradora e a supracitada. Quem as vê de fora não imagina um terço do que já
passaram juntas, mas é perceptível a sintonia de seus gestos, a coerência de
suas frases, o ritmo comum de suas ações. Para os demais, sobra a constante
sensação de que estão conversando silenciosamente, por telepatia, uma
habilidade adquirida menos com o tempo que com a intensidade dos momentos
vividos.
Eles, porém, não imaginam
tamanha verdade que elas carregam nos tão proferidos “eu te amo”,
longe de serem banais, mas sim honestos a ponto de não se poder calar. Não,
terceiros jamais entenderiam. Resta a eles criticar, admirar, ou até mesmo
conviver com aquilo que elas criaram para si. Talvez possamos denominar
irmandade. Não... É outra coisa, algo que ainda não tem nome. Mas quem se
importa com tipificações? Contentam-se em saber que alguém, quase sempre ao
alcance da voz, conhece, cuida e ama, acima de (e principalmente com) todos os
defeitos. Alguém para o qual se possa entregar a parte mais pura e guardada do
coração. Alguém que jamais o magoaria.
Penso em tudo isso no
breve instante em que a abraço e os recebo, o sorvete e o saco de doces. É o
tipo de coisa que penso mais frequentemente que verbalizo, calando por ocasião
das banalidades. Mas cá estou, sem vergonha alguma, bobamente agradecida não só
pela alegria do momento, como também, e sobretudo, por tudo que reservamos uma para a outra.
Por cada segundo em que me senti feliz, cuidada... Protegida. E, mais ainda:
pelo fato de ser guardada pelo melhor anjo que eu poderia querer.
Paula Braga.
Belo texto. Parabéns.
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